Fim de tarde de outono.
Cidade envolta em nuvens de vento alaranjadas, mais pronunciadas a leste, lembrando o velho ditado popular: “raivas no poente toca os bois e anda sempre”.
Nos arredores do velho burgo, já não há pares de bois cangados a lavrar os pastos quase secos. As terras há muito são amanhadas por tratores de dimensão desproporcionada, mais adequados às planícies do além-Tejo, que às courelas das nossas ilhas. Mas que fazer, se é a Europa rica que dá subsídios aos agricultores para eles comprarem alfaias fabricadas nos países industrializados?
Terá sido também por isso que os nossos “amigos” nos emprestaram dinheiro para pagarmos, rapidamente, não vá a situação financeira agravar-se e eles ficarem sem anéis e nós sem dedos!...
Ontem foi um dia terrível, um dia de raiva para com os funcionários públicos e a classe média, um dia premonitório da calamidade que teremos a partir de janeiro: cortes nos salários, nas pensões, na saúde, na educação, aumento do desemprego, da insatisfação social, da recessão económica...tudo escrito naqueles volumosos dossiers e “pens” que os governantes, com ar risonho e satisfeito, entregaram à jovial presidente do Parlamento.(1)
Terça-feira foi um dia de raivas, no céu e nos cidadãos, convencidos de que a terapia imposta para reduzir o défice, não trará a cura, mas a morte de tantas esperanças num país que acordou em abril de uma noite medonha que julgávamos não mais voltar.
Em contraponto, com as desgraças que nos cruzam a porta, centenas de idosos estrangeiros desembarcaram na cidade.
Passeiam pelas ruas, mas não se apercebem da crise do comércio, do desemprego que arrasa e destrói tantas famílias, da penúria que há, portas adentro.
Chegam e partem pelas portas do mar, sem se aperceberem de que meu povo busca seu pão, nas terras do tio Sam. Com a melodia da tradicional Lira, podería continuar o lamento: De maravilhas e sonhos, dizem que as ilhas são; é sim pr'a olhos jantados, mas p'ra meu povo inda não.
Hoje, a raiva deu lugar ao lamento, à incapacidade coletiva de mudar, de encontrar forças para alterar a situação que nos é imposta.
O discurso oficial entrou na verborreia dos comentadores do regime e chegou aos cidadãos abastados: Não há volta a dar! Temos de pagar o que pedimos, se não, não nos emprestam mais. Este é o discurso oficial que passa nas rádios e televisões e que o cidadão menos avisado, aceita.
Eu já não ouço notícias – confessava uma idosa aposentada da função pública. Já não me importa. Tanto se me dá que tirem mais isto ou aquilo. No tempo de Salazar – e eu não quero voltar a esses tempos – ao menos havia segurança. A gente sabia com o que podia contar. Agora...
O derrotismo e a impotência invadiram as conversas e a mentalidade coletiva.
Os cidadãos andam com um ar tristonho que pode degenerar em tragédia coletiva, no desinteresse pelos destinos do país e do nosso futuro.
Noutros tempos, havia um anedotário imenso ridicularizando personalidades públicas; muitos contadores pelavam-se por ter a última e, para além das anedotas, havia piadas, poemas e canções de protesto e resistência ao situacionismo, transmitindo críticas e novas visões políticas, económicas e sociais.
Faltam, hoje, esses co(a)ntadores que promovem a catarse do povo triste e desanimado e apelam à esperança que tanta falta faz ao país e a estas ilhas.
Não é derrotismo, não! É a realidade que se pode constatar nas simples conversas de rua.
A resiliência de que tanto carecemos, é a única forma de dar a volta a isto.
Noutras ocasiões, já provámos que eramos capazes. Por isso, VAMOS CONSEGUIR!
(1) Foto do jornal Público.
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